Após uma forte pressão da sociedade, o Senado Federal recuou, na terça-feira (17), no projeto de lei que trazia diversas alterações no funcionamento dos partidos brasileiros. A reforma partidária e eleitoral, no entanto, foi aprovada na quarta (18) pela Câmara quase na íntegra, com apenas quatro pontos polêmicos suprimidos. A proposta foi vista como uma forma de afrouxar a fiscalização e gerou muita controvérsia.
Imenso retrocesso
A proposta de mudanças na lei dos partidos acontece em meio a polêmicas pela intenção de elevar o Fundo Eleitoral de R$ 1,8 bilhão para R$ 3,7 bilhões. Na opinião do economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas, as legendas estão querendo uma carta branca da sociedade: ao mesmo tempo em que aumentam os recursos, diminuem mecanismos de controle.
No projeto inicialmente proposto, estavam previstas ações como a possibilidade de cada partido utilizar um sistema diferente para prestação de contas, e não mais o modelo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), chamado de Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA); a punição apenas em caso da prova da existência de conduta dolosa, abrindo espaço para anistia de processos; a flexibilização de regras para o uso do fundo partidário (composto por dinheiro público), podendo ser destinado para adquirir imóveis e pagar advogados; além da estipulação de um limite do valor mensal para o pagamento de multas.
“Isso seria um retrocesso de algumas décadas. São vários anos lutando para que houvesse uma prestação de contas de uma maneira uniforme, padronizada, o que acabou sendo implantado após muita resistência. Isso por si só já é um primeiro absurdo no que diz respeito à questão da transparência das contas dos partidos e a dificuldade imensa que haveria, tanto para o TSE quanto para os órgãos públicos, de estarem acompanhando os gastos. Depois os prazos de prestação de contas também seriam postergados, tanto do Fundo Partidária quanto no Eleitoral. Há outros itens absurdos, como permitir que, até o julgamento de uma eventual irregularidade, os dados sejam modificados, ou seja, os partidos poderiam lançar informações falsas em um determinado momento, alterando-as apenas futuramente, quando estiverem prestes a serem julgados”, explica Gil.
A Câmara suprimiu quatro pontos polêmicos do projeto original: a permissão para que os partidos pudessem corrigir erros na prestação de contas até o julgamento na Justiça; a extensão do prazo para prestação e correção das contas partidárias; a permissão de vários sistemas para prestação de contas, além do TSE; e a possibilidade de punição por erros apenas quando houvesse dolo. No novo texto, a autorização para o pagamento, via fundo partidário, de advogados para processos de políticos passou a valer apenas para processos eleitorais.
Foram mantidos, no entanto, pontos controversos. Um deles é a permissão para que pessoas físicas, partidos ou candidatos paguem diretamente advogados em campanhas eleitorais. O limite para o pagamento de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, que alongará o prazo para quitação, também foi mantido.
Além disso, foi retomada a propaganda partidária na televisão e no rádio nos anos em que não há campanha eleitoral – o que gera renúncia fiscal para os veículos.
Participação da sociedade foi fundamental
Para Gil Castello Branco, a pressão exercida pela sociedade foi fundamental para evitar a aprovação de parte das medidas polêmicas. “O recuo aconteceu especificamente porque houve pressão. No Congresso, há aqueles que reagem por índole, e outra enorme quantidade que é movida por conta do temor das próximas eleições”, destacou.
Castello Branco lembrou que os parlamentares tentaram aprovar o projeto às pressas, mas desistiram após os detalhes da iniciativa virem à tona. “Isso passou a toque de caixa na Câmara, com votação expressiva. Quando foi para o Senado, o presidente colocou para votação mesmo antes de o projeto estar disponível para os senadores, o que é um absurdo. Houve uma insistência para que a nova lei fosse votada naquele momento, quando surgiu a pressão. Instituições como o Contas Abertas, Transparência Partidária, Transparência Internacional e Transparência Brasil movimentaram o plenário, distribuíram cartas. Diversos senadores se pronunciaram e a votação foi adiada. Na terça-feira, data da votação, a repercussão já foi muito maior, porque a imprensa percebeu e repercutiu todos os absurdos”, disse.
O especialista em transparência garantiu que as entidades continuarão fazendo pressão para evitar que a Câmara aprove o afrouxamento das medidas, mas deixou claro que a sociedade pode e deve acompanhar a fiscalização sobre seus representantes. “Há um risco desse pacote de medidas ser aprovado, sim. Os deputados estão avaliando os prós e os contras e vão tentar ou empurrar goela abaixo ou respeitar o que a sociedade está desejando, que seria o mais lógico, o mais natural dentro dos princípios da ética e da transparência”.
+ Transparência exige mais transparência
Para Castello Branco, este é um mecanismo de autoproteção, uma vez que as regras e as circunstâncias não permitem outras fontes de receita para os partidos e para as campanhas. “Como a classe política e os partidos estão desacreditados, as pessoas não fazem doações e, portanto, eles precisam recorrer ao dinheiro público para financiar as atividades. E estão fazendo isso de diversas formas, seja por meio do Fundo Partidário, do Fundo Eleitoral ou da volta da propaganda partidária na televisão”, disse.
Reconciliação com a sociedade é o caminho
A solução para esse impasse, na visão de Gil, é exatamente o oposto do que uma parte da classe política está fazendo: uma mudança radical nas regras partidárias e eleitorais, e uma reconciliação entre a política e a sociedade. “Há mais de uma década, os partidos deixaram de ser a única forma de organização. As redes sociais e os movimentos passaram a ter uma força maior do que as legendas. Isso foi visto na última eleição: enquanto houve uma luta por tempo de televisão e recursos, diversos representantes foram eleitos por partidos minúsculos”, destacou.
Neste cenário, o caminho seria adotar novas práticas. “Era preciso uma reforma radical, não projetos que adiam por anos e anos uma mudança mais concreta. Hoje há um descasamento do que os partidos pretendem e do que a sociedade deseja, e se as forças políticas pensassem com inteligência a médio e a longo prazos, perceberiam que isso é totalmente inadequado”, disse.
Castello Branco considera, ainda, que não é função do Estado financiar as campanhas eleitorais. “O papel estatal é levar os eleitores às urnas, organizar as eleições, garantir que cada cidadão possa se manifestar livremente e fazer a apuração e divulgação dos resultados em tempo hábil. Para isso existem o Tribunal Superior Eleitoral e os Tribunais Regionais Eleitorais. No entanto, o que os partidos querem é que o Estado os financie. A sociedade não dá crédito e não está disposta a aportar todo esse volume de recursos, ainda mais com o momento de severa crise fiscal que o país enfrenta”.